quarta-feira, 4 de abril de 2012

Desde quando existe acarajé em Jerusalém?

 


Originado nos cultos de candomblé, onde servia como uma oferenda a Iansã, rainha dos raios e dos ventos, o acarajé tem mais de 300 anos de existência. Ao longo desse período, uma série de mudanças ocorreu: a receita já não leva apenas o tradicional bolinho de feijão; a vestimenta branca, a saia rodada e a bata que caracterizam a vestimenta da baiana foram substituídas por outras roupas; e a preparação do quitute – até então restrita às mulheres – passou também a ser feita por homens.

Além disso, o acarajé deixou de ser encontrado somente no tabuleiro da baiana e, hoje, pode ser comprado em delicatessens e restaurantes. Outra transformação, esta mais recente, é a venda da iguaria por pessoas de outras religiões, além do candomblé. Os evangélicos, por exemplo, chamam a iguaria de “bolinho de Jesus”, e alguns deles se recusam a vestir o traje de baiana. Essas mudanças fazem com que o acarajé perca a identidade?

O assunto é polêmico e divide opiniões, mas, para a antropóloga Gerlaine Martini, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), sim. O assunto fez parte da sua tese de doutorado defendida em julho de 2007. Intitulado Baianas do Acarajé – A uniformização do típico em uma tradição culinária afro-brasileira, a autora analisou as transformações sofridas por suas formas tradicionais de venda a partir do século XX.

Iguaria sofreu mudanças na receita e na forma de comercialização 

Além da busca pela natureza e a importância da atividade da venda de acarajé em Salvador, o trabalho tem como cerne o surgimento do chamado “acarajé de Jesus”, prática bastante recente da venda de acarajé por baianas convertidas ao protestantismo, principalmente o neopentecostal, que almejava se desvincular totalmente da tradição.

Religião – “Percebemos uma forte mudança na tradição quando adeptas do candomblé se tornam protestantes. Mesmo professando uma nova crença, desejam manter sua fonte de renda. Para isso, decidem retirar todos os signos que liguem o quitute à religião africana, como a roupa branca, o turbante e as contas no pescoço. Desfiguram o ofício ao querer que o acarajé seja visto não como uma oferenda, mas apenas como uma refeição”, explica a antropóloga brasiliense.

Para realizar o trabalho, Gerlaine Martini residiu no terreiro Ilê Odô Ogê – Pilão de Prata, localizado na Boca do Rio, e permaneceu um período no Pelourinho, onde se encontra a sede da Associação das Baianas do Acarajé e Mingau (Abam). “Também procurei visitar diversos bairros, as festas de largo e busquei inclusive os tabuleiros dos considerados evangélicos. Observei o cotidiano de venda nos pontos, desde os de menores recursos até os mais consagrados pela opinião popular”, relata.

Na opinião da antropóloga, além da venda do acarajé por pessoas de diferentes religiões, outra mudança que descaracteriza o quitute é a venda do produto fora dos tabuleiros.
“A existência do tabuleiro e o fato de ser preparado na rua são tradições que devem ser respeitadas. Isso precisa ser preservado, e deixa de ser quando o acarajé passa a ser vendido em restaurantes e delicatessens”, diz.

Para a presidente da Abam, Maria Leda Marques, o crescimento indiscriminado da venda de acarajés em Salvador, seja por estabelecimentos ou por adeptos de outras religiões, é um dos fatores que podem levar a uma possível perda de identidade.

“Há pessoas vendendo o acarajé sem nenhum compromisso com a nossa história, com a cultura, e é preciso preservá-la independentemente da religião. É preciso saber conviver com as diferenças, mas respeitando o lado cultural”, afirma.

Maria Leda critica a postura adotada por algumas vendedoras de acarajé evangélicas que chamam a iguaria de “bolinho de Jesus” e se recusam a se trajar de baiana. “Eu desconheço que, em algum momento na história, Jesus Cristo tenha comido acarajé para que eles chamem de o bolinho de Jesus. O acarajé, até hoje, é uma oferenda a Iansã, pertence e sempre pertenceu aos orixás. Não podemos e nem queremos impedir quem quer que seja de vender acarajé. O que pedimos é que respeitem a história”, exige.

Segundo ela, mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado pelas baianas tradicionais uma comida sagrada. “Apesar de todas essas mudanças, para as baianas legítimas, o bolinho de feijão-fradinho frito no azeite de dendê não pode ser dissociado do candomblé. Daí a importância de se manter a receita e lutar para que essa tradição seja passada de pais para filhos”. 

É que o quitute, que leva massa de feijão frita em azeite de dendê servido com pimenta, camarão, vatapá, caruru ou salada, ganhou uma versão gospel em Vila Velha. A ideia foi da cozinheira Maria Zélia Marques Silva, 48 anos. Baiana e evangélica há 25 anos, ela não queria abrir mão da iguaria e lançou o "acarajé crente".

"Muitas pessoas se recusavam a comer o prato porque a maioria das baianas consagra o bolinho aos orixás – ofertam sete acarajés às entidades", explica. Há quatro anos preparando a receita na pracinha de Coqueiral de Itaparica, Maria Zélia já tem muitos clientes.

"Minha maior clientela é evangélica, mas tem muita gente que vem procurar o acarajé gospel. A receita é a mesma, igual a original. A diferença é que eu não faço a oferenda", conta.

Para o pastor Abílio Rodrigues, presidente da Associação de Pastores de Vitória, essa diferença é fundamental para que os evangélicos possam saborear o prato. "Comida é comida, mas a Bíblia prega que o homem deve se abster da prostituição e da comida consagrada aos ídolos. O bolinho não é o problema, a questão é a consagração", diz.

De acordo com o pastor, no momento da alimentação acontece uma aliança que deve ser feita de acordo com as crenças de cada um. "Isso deve ser observado em qualquer alimento, um pedaço de carne, um acarajé, balas de Cosme e Damião. Você é aquilo que você come, então um evangélico não deve comer um prato consagrado. Depois que descobri o acarajé gospel, até já experimentei", acrescenta.

Mundo espiritual 
Ele comenta que as consequências para quem comer um alimento consagrado são espirituais. "A pessoa não vai morrer ou desenvolver uma doença. Mas é preciso entender que o mundo espiritual pode interferir no real", completa o pastor.

Cristiane Ramalho, 44, cliente assídua de Maria Zélia em Vila Velha há dois anos, freqüenta a barraquinha por causa do sabor do acarajé e não pela religião. "Para mim, cada um tem uma crença. Não é um bolinho que vai mudar isso. A fé está na ação das pessoas", acredita.


Fontes:
Jornal A Tarde - http://atarde.uol.com.br/cidades/noticia.jsf?id=910503
Canal Entreentedimento do YouTube - youtube.com/watch?v=0Fhy5G6GqLs
Gazeta On Line - http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2009/10/549904-acaraje+gospel+faz+sucesso+entre+evangelicos.html

Nenhum comentário :

Postar um comentário